terça-feira, novembro 21, 2006

A Missão de Portugal (continuação)

O velho ergeu o punho com um ar ameaçador. Os seus cabelos em desalinho e o tom agressivo da sua voz faziam lembrar a figura do Velho do Restelo. "De certeza que os sentimentos que o animam são os mesmos que verdadeiramente estavam por detrás dos descobrimentos. A sede de mais poder e mais riqueza já cegou muita gente!"
A velhota puxou da sua carteira, tirou duas moedas, e ao entregá-las ao homem do chapéu de palha disse :
"Não vejo mal nenhum em querer ter poder e riqueza. O que é importante é não perder a sua própria identidade, não se transformar naquilo que nunca poderá ser. Não ser controlado por desejos fúteis, mas sim por aqueles que mais profundamente ardem dentro do peito."
"Ora até que enfim que ouço alguém com um discurso sensato. Esta senhora ainda não destapou o frasquinho mas, apenas pela sua posse, já se nota a sabedoria nas suas palavras."
"Mas você acredita mesmo nessa coisa dos portugueses terem uma missão a cumprir no mundo?"
O homem dos frasquinhos fechou os olhos por um momento e depois olhou para o céu antes de começar a falar, como se procurasse inspiração para explicar algo que talvez não compreendesse muito bem.
"A história repete-se meu amigo. Temos portanto que estar bem atentos e preparados para saber reconhecer em cada momento o caminho a seguir. E, se naqueles tempos era necessário descobrir o exterior para completar os mapas e ligar o ocidente com o oriente, é hoje ainda necessário unir o norte com o sul e o exterior com o interior, até que todos os homens reconheçam o valor de todas as confluências, o nada que é tudo."
Uma jovem lindíssima de pele morena e olhos verdes pegou numa das peças, mirou-a enquanto a rodava entre os dedos, e de repente, quase num movimento precipitado, destapou-a, inspirou levemente pelas narinas e ofereceu aos seus colegas dizendo: "Vejam só que belo aroma. Além de bonitos estes frascos contêm um perfume delicioso."
O vendedor de orgulho olhava para eles calmamente de braços cruzados, um sorriso divertido estampava-se-lhe no rosto.
"Qual é o preço?" perguntou um jovem de cabelo encaracolado e jeans rotos. "É o que quiserem dar". "E se não quisermos dar nada?" desafiou o jovem. "Isso é convosco. O orgulho não tem preço."
O jovem açambarcou três ou quatro frasquinhos, destapou um e guardou os outros no bolso da camisa. O polícia aproximou-se dele e quis cheirar também. Deu uma gargalhada antes de inalar sôfregamente o delicioso filtro. A senhora idosa destapou também o seu frasco e verificou que, apesar de não conter qualquer espécie de líquido, exalava um odor adocicado muito agradável.
"Orgulho-me muito de todos vós." Disse o homem que vendia orgulho. "A nossa curiosidade pelo desconhecido e a nossa capacidade de sonhar são as forças que impelem todas as nossas missões."
Um dos jovens tirou uma guitarra do saco e dedilhou uma ária medieval. Alguém começou a entoar uma melodia de fado que se transformou rápidamente num coro, chamando a atenção dos curiosos que paravam para apreciar a cena.
Já não havia mais frascos em cima da manta e o homem do orgulho cantava orgulhosamente. Depois os jovens fizeram-lhe um convite: "Gostávamos que viesse almoçar connosco."
O homem dobrou a manta, olhou à sua volta e viu a velhota ainda a bater o pé na cadência da música. "Bem, vou andando." Disse ela, e abalou por cima do passeio quase com um jeito de dança. O velho seguiu-a sem dizer nada e sem olhar para ninguém.
O homem que vendia orgulho virou-se para os jovens e disse : "Então? Vamos?" E lá foram à procura de uma tasca onde certamente iriam comer uns pastéis de bacalhau e beber uns copos de vinho enquanto falavam de velhas histórias de marinheiros.
O polícia seguiu devagar pela rua abaixo a pensar em toda aquela gente enquanto assobiava baixinho o hino nacional.

Do livro de contos "Sonhos" Colectânea de Autores de Alhos Vedros, Edições CACAV 1999

3 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Gostei muito, outra vez.

11:05 da manhã  
Blogger CIDE disse...

Vive e deixa viver.

Quando o questionavam sobre seu o modo de vida, Manel Neto respondia imperativamente: "quem vai vai, quem está está". Sentado à porta da taverna, mesmo no centro da Vila, por onde passávam conhecidos e desconhecidos, Manel Neto trazia consigo um curriculum invejável: contava-se que nas inúmeras incursões ao balcão da tasca, era capaz de beber um garrafão de vinho, acompanhado de um e apenas uma azeitona. À porta da tasca, lugar sacralizado pela sua presença diária, o taberneiro colocou uma cadeira onde o religioso se sentava, e de onde poderia ver o mundo, claro está o seu mundo, mergulhado no licor que lhe dava cor à vida. De lá, perante o mundo suspirava aforismos sábios sobre o que lhe parecia ser a vida. A mais profunda e sábia, foi aquela, cuja mensagem afastava todos aqueles que lhe queriam impor uma forma de vida, com a qual não se identificava. Amigo não empata amigo; inimigo muito menos. E para quem nada sabe de ética ou de respeito pela vida dos os outros, o Manel analfabeto de formação dava lições de alta cultura: quem passa deve seguir o seu caminho e deixar estar quem está, na sua vida, como acha que deve estar.

Estórias de Alhos Vedros. in Quem Vai Vai, quem está está.

http://quemvaivaiquemestaesta.blogspot.com/

5:51 da tarde  
Blogger ATIREI O PAU AO GATO disse...

Viva meu amígo!
Não te vou dizer que o teu blog é muito bonito e interessante pois tenho sido uma visita invisível e de certo que aqueles que por aqui se passeiam já devem ter expressado essas impressões.
Mas vou dizer-te que sempre gostei desta história e desde a primeira hora achei que era das melhores da singela colectânea em que viu a luz de outros olhos.
Pois é mesmo disso que nós precisamos, pequenas histórias de nós nestes tempos em que tanta coisa nos têm decepado na cultura em que nos damos ao mundo e em ele acrescentamos mais uma de gotinha da tal pluralidade que justifica o sucesso desta nossa espécie, deste mundo tão doido quanto maravilhoso.
E sempre achei o final cinéfilo -foi Jonh do Passos, um descendente de portugueses, quem na literatura muito contribuiu para que se inventasse a linguagem do cinema moderno- como, se num daqueles imitares da genialidade de um Tarkovski, a cena terminasse com o homem, de costas, afastando-se e o preto e branco da imagem fosse objecto de uma lenta passagem para a cor que acabaria por aparecer a palavra fim.
Não sei se foi de propósito que postaste esta tua história enquanto decorria o debate sobre a lusofonia no Largo. Mas nos comentários desta última conversa há uma Senhora que se nos refere como uma espécie de blogs da Madredeus pois em conjunto fazem uma espécie de contributo para a preservação da cultura portuguesa. Honestamente senti-me elogiado em ponto superior ao que certamente merecerei. Seja como for, por acaso agora, de memória, não me recordo se ela cita este espaço que muito apetece visitar, mas na minha modesta opinião ele também lá teria que estar e se não está é tão porque a Senhora, provavelmente, nunca aqui entrou.
Pois é meu amigo, estamos a fazer futuro, estamos a ser parte do futuro que se está a construir e isso entusiama-me e acho que o mesmo acontece contigo.
Assim sendo tenhamos a vontade de permanecer. A luta por um mundo melhor também, em pequeníssima parte é certo -mas não somos nós simples pessoas comuns?- mas seja como for também é por aí que passa.
Salve homem que tens alegria em viver!
Luís Foch

8:53 da tarde  

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